27 October 2007

Missivas

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Isabelinha
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O correio de hoje não trouxe carta tua. Não te posso dizer ao certo porquê. Mas eu não estou a ver bem como vou passar estes dois meses que se vão seguir. Parece-me uma coisa cinzenta à minha frente, em que eu não distingo nada. Pouco a pouco fui-me convencendo de que te podia ver durante este tempo. Dois meses é imenso tempo. Depois disso não sabia. Era como se estivesse a andar para uma luzinha. Faz-me falta não te ver. Estou desterrado.
Ontem pensei que, se tu morresses, eu também morria. Só posso pensar na vida contigo. Que coisa extraordinária! Não é porque desaparece o objecto de um desejo intenso; era porque cortavam uma parte de mim sem que eu não podia viver.AntoninhoNão recebi hoje notícias tuas. Não sei porque não me escreveste. Quando recebo notícias fico mais satisfeita. Agora não sei que pensar. Não poderás arranjar que eu tenha sempre notícias? Escreve-me sempre que tiveres alguma coisa para me dizer.
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Olha meu Antoninho,
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eu agora tenho sempre a impressão de que vivo porque tu vives, que se deixasse de te ter, acontecia-me o mesmo que a uma pessoa que estivesse pendurada num poço por uma corda segura em cima por outra pessoa, se essa outra pessoa largasse a corda, caía ao poço. Hoje sinto-me abandonada. A minha vida até te encontrar passou-se à tua espera. Podia viver porque ainda não sabia. Agora que sei, tudo mudou.
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Minha querida Isabelinha
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Não tenho agora nada de grande para te dizer. Só coisas pequenas e de que me envergonho de te falar.
Custa-me falar destas coisas. Prometo que não te falarei delas muitas vezes. Tu contas-me coisas muito mais bonitas. Mas a cidade é uma cousa pequenina. O [Axel] Munthe diz que quando os macacos vivem em sociedade numa jaula nunca estão tristes, porque têm imenso que fazer: espiam-se uns aos outros, fazem caretas, intrigam, etc. Eu não te digo que estou muito entretido, mas a gente na cidade vive como os macaquinhos.
Continua a contar-me coisas como as destes dias.
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Correspondência entre Maria Isabel e António José Saraiva
In
Só Para Meu Amor É Sempre Maio
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*imagem Jonathan Wolstenholme
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3 comments:

náufrago do tempo e lugar said...

Generoso e belo!
Sublimes os coros gregorianos que não me canso de ouvir.
Obrigado.


partilharás os momentos solares, os sorrisos,
os murmúrios, as palavras antigas…
e soltarás as ferragens das arcas envelhecidas
onde jazem encoiradas as doces lembranças,
os gestos, as horas de silêncio macio...


Peregrino
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Meu Be«be»zinho lindo:
Não imaginas a graça que te achei hoje à janela da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver.
Tenho estado muito triste, e além disso muito cansado; triste não só por te não poder ver, como também pelas complicações que outras pessoas têm interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente e hábil dessas pessoas, não ralhando contigo, não se opondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espírito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já diferente; já não és a mesma que eras no escritório. Não digo que tu própria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado...

Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vai haver, ou o que vai ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influências de família, e de em tudo seres de uma opinião contrária à minha. No escritório eras mais dócil, mais meiga, mais amorável.

Enfim...

Amanhã passo á mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu aparecer á janela?
Sempre e muito teu,
Fernando


"Cartas de Fernando Pessoa a Ofélia Queirós" (27 de Abril de 1920)

SMA said...

Cartas... trocas de vidas... entre vidas... vida em linhas e tinta...

bjo doce

Isabel Victor said...

Deliciei-me ... com a ternura deste magnífico "ridículo"

B* TeresaMar e mar e a(mar)