15 April 2008

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Como é que se despe um corpo?
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Não precipites a resposta, não lances já as mãos inquietas sobre a roupa. Demora-te.
Começa pelo princípio. Pergunta primeiro: o que é despir um corpo?
Libertá-lo do que lhe pesa.
Do que o esconde.
Expô-lo.
Mas principalmente:
Procurar entender.
Ler. Para além da superfície.
Começar com a nudez. De qualquer modo, é sempre assim que se começa. Com o mundo a exercer pressão sobre a pele. Lembrando que viemos apenas ocupar mais uma porção de vazio. Mas. Os vazios não passam de pontos de partida.



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Pedro Jordão, in Revista NU, Março de 2004
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imagens, Vladimir Lestrovoy
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23 March 2008

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Ainda haverá música um dia?





subitamente às vezes penso




um terror absurdo

que é da menoridade

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a música

a arte

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tudo aquilo em que precisamos de reclinar um pouco a cabeça.


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Vergílio Ferreira, in Alegria Breve
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Imagens,

Werner Branz. Sem título
Vladimir Lestrovoy. A musician looking for his ear
Phillip Halsman. Dali Atomicus
Vladimir Lestrovoy. So sad...
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17 February 2008

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Il y a toujours un rêve qui veille



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Désir à combler,
Faim à satisfaire,
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Un coeur généreux,
Une main tendue,
Une main ouverte,
Des yeux attentifs,
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Une vie,
La vie à se partager.
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Paul Eluard , in Presentation de Gee

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18 December 2007

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Velho Menino-Jesus que me vens ver
Quando o ano passou e as dores passaram:
Sim, pedi-te o brinquedo e queria-o ter,
Mas quando as minhas dores o desejaram...
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Agora, outras quimeras me tentaram
Em reinos onde tu não tens poder...
Outras mãos mentirosas me acenaram
A chamar, a mostrar e a prometer...
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Vem, apesar de tudo, se queres vir.
Vem com neve nos ombros, a sorrir
A quem nunca doiraste a solidão...
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Mas o brinquedo... quebra-o no caminho.
O que eu chorei por ele! Era de arminho
E batia-lhe dentro um coração...
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Miguel Torga, in Diário III
Imagem, Albrecht Dürer. Virgem com o Menino, 1489
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15 December 2007

Renas e duendes... não tarda é Natal
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De manhã à noite, o Pai Natal lê cartas e dá instruções aos seus duendes. Noite e dia, duendes apressados e atarefados, fabricam, devotadamente, presentes e presentes, escrevem endereços e colam selos em inúmeros envelopes.As mamãs duendes pintam, de vermelho e dourado, quilómetros de fitas que os seus dedos transformam em exuberantes laçarotes, e passam a ferro folhas de papéis coloridos que sobraram do Natal anterior.
Este Outono, nasceram mais uns quantos duendes bébés na Korvatunturi, a Montanha da Orelha. Exactamente, a casa do Pai Natal fica na Montanha da Orelha, algures na Lapónia finlandesa, que tem, de facto, a forma de uma grande orelha, único lugar onde o Pai Natal pode ouvir todos os desejos, e onde chegam todas as vozes das crianças e adultos do planeta.
E nasceu, também, mais um bébé na família Rudolf, que este ano ainda dorme tranquilo no seu pequeno berço, mas, certamente, no próximo Inverno, acompanhará o avô Rudolf céus afora, guiando o trenó de renas até às chaminés de todos os meninos.
A noite cai cedo na Montanha da Orelha. Para lá da janela embaciada, há campos brancos, telhados pequeninos que pingam cristais azuis, um lago gelado de estrelas adormecidas e um cobertor de diamantes que ilumina todos os lobos e ursos, coelhos e outros animais da montanha, que na neve correm, e, entre pinheiros disfarçados de algodão doce, se escondem e brincam.
Já tarde, quando os duendes adormecem cansados, o Pai Natal, quentinho e aconchegado, senta-se na sua cadeira de baloiço e responde a todos os meninos do mundo. Ilumina-o um sorriso fantástico e pensa em coisas boas, pois os bons pensamentos chegam junto das pessoas em que pensamos.
Aqui, mais a sul, onde o frio demora a chegar, a neve teima não cair, mas as luzes multicores se já acenderam, não tarda será também Natal.
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Morada do Pai Natal...
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SANTA CLAUS MAIN POST OFFICE
96930 Arctic Circle
FINLAND
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12 December 2007

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a verdade é que não acredito
na existência das musas
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os musos e musas mais eficazes não são os amados reais
mas as ilusões passionais
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a fabulação
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pura
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Quanto mais longínqua, mais frustrada, mais impossível, mais irreal, mais inventada for a relação sentimental, mais possibilidades tem de servir de incentivo literário. Aquilo que é imaginário espicaça a imaginação, enquanto a realidade pura e dura, o ruído próximo da vida de cada um, é uma péssima influência literária.
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Rosa Montero
in A Louca da Casa
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imagem Maggie Taylor
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11 December 2007

nome, coração

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porque nas calhas da vida
gira
a entreter a razão
um comboio de corda
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imagem in

http://www.forumsons.com/index.php?showtopic=8071&hl=_fotografia&st=30

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17 November 2007

De Estrela em Estrela, Viajante

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Assim Falou Zaratustra. Richard Strauss, 1896
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"- As pessoas têm estrelas que não são as mesmas. Para os viajantes, as estrelas são guias. Para outros, não passam de luzinhas. Para outros, os cientistas, são problemas. Para o meu homem de negócios, eram outro. Mas todas essas estrelas estão caladas. Tu, tu vais ter estrelas como mais ninguém.
- À noite pões-te a olhar para o Céu e, como eu moro numa delas, como eu me estou a rir numa delas, para ti, é como se todas as estrelas se rissem! Vais ser a única pessoa do mundo que tem estrelas capazes de rir!”.
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Saint-Exupéry, in O Principezinho

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"Já ouviste falar do viajante e da sua sombra?
O certo é que devo prendê-la mais, ou voltará a prejudicar-me a reputação.
E Zaratustra voltou a abanar a cabeça com admiração: “Que devo pensar disso? — repetiu.
Por que gritaria o fantasma? “Já é tempo! Não há um instante a perder!”
Mas, para que é que já é tempo?"
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"De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito."
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Nietzsche, in Assim falou Zaratustra, Livro I, 1885
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Sempre que perco a confiança nos homens,
ganho-a nas estrelas.
Como neste preciso momento.
Abro a janela que dá para o sul:
Os Três Reis Magos, na bela Orion,
definem uma curva aberta
com a alfa do Cão Maior, a fulgurante Sírio,
a qual continua em arco de ferradura
com a alfa do Cão Menor, os leais Gémeos
Pólux e Castor e o anelado Saturno.
E os meus olhos sorriem de novo, confiantes
na terna placitude que baixa do oceano nocturno.
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Zénite, Fulgurante Placitude

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http://www.cisnenegrocisne.blogspot.com/
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Imagens
1. ET. Steven Spielberg, 1982
2. 2001. Odisseia no Espaço. Stanley Kubrick, 1968
3. Piano Fenêtre ?
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14 November 2007

NU SHU, A Escrita Secreta

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Há mais de mil anos, o imperador Song Zhezong procurou pelo reino uma nova concubina. Lu, um agricultor de certa educação e bom senso, tinha uma filha, Yuxiu, que muito intrigou o Imperador, pela sua cuidada educação. Recitava poesia clássica e aprendera a escrita dos homens, cantava e dançava, e os seus bordados eram perfeitos.
Yuxiu foi a escolhida, mas nem a sua educação esmerada a salvou da melancolia da ausência do lar da sua infância. Só e triste, Yuxiu modificou, inclinou e efeminou a escrita masculina e criou caracteres novos que nada tinham a ver com a escrita dos homens, e criou NU SHU, um código secreto, estritamente feminino, que permitia manter os laços que uniam as raparigas às suas famílias.
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“Diz-se que os homens têm corações de ferro ao passo que os das mulheres são feitos de água. Isto transparece tanto na escrita dos homens como das mulheres. A escrita dos homens tem mais de 50 000 caracteres, todos absolutamente diferentes, cada um com significado e nuanças profundas. A nossa escrita de mulheres tem talvez 600 caracteres, que nós usamos foneticamente, como os bébés, para criar cerca de 10 000 palavras.
A escrita dos homens demora uma vida inteira a aprender e compreender. A escrita das mulheres é algo que assimilamos em raparigas, e confiamos no contexto para deduzir o significado. Os homens escrevem acerca do reino exterior da literatura, das contas e das colheitas; as mulheres escrevem acerca do reino interior das crianças, das tarefas diárias e das emoções.”
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Lisa Lee, in O Leque Secreto
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O Leque Secreto, uma escrita no feminino, é um relato duro e minucioso de todo o ritual de enfaixamento dos pés. Porque o homem se revia, em termos fálicos, num pé feminino pequeno e perfeito, o enfaixamento, demorado percurso de sofrimento, tantas vezes doença, e por vezes morte, tinha como fim único agradar ao homem escolhido e conduzir à felicidade.
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09 November 2007

porque a hora se fez

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Jardins de Silêncios
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são as memórias
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são vozes interiores
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encontro
reconciliação
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hiatos, compassos
desatinados
ardentes
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enfim em pousio
deslembrados
lânguidos
sonâmbulos
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são vidas
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vida amor e morte num mesmo tempo
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Mount Street garden, Londres
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27 October 2007

Missivas

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Isabelinha
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O correio de hoje não trouxe carta tua. Não te posso dizer ao certo porquê. Mas eu não estou a ver bem como vou passar estes dois meses que se vão seguir. Parece-me uma coisa cinzenta à minha frente, em que eu não distingo nada. Pouco a pouco fui-me convencendo de que te podia ver durante este tempo. Dois meses é imenso tempo. Depois disso não sabia. Era como se estivesse a andar para uma luzinha. Faz-me falta não te ver. Estou desterrado.
Ontem pensei que, se tu morresses, eu também morria. Só posso pensar na vida contigo. Que coisa extraordinária! Não é porque desaparece o objecto de um desejo intenso; era porque cortavam uma parte de mim sem que eu não podia viver.AntoninhoNão recebi hoje notícias tuas. Não sei porque não me escreveste. Quando recebo notícias fico mais satisfeita. Agora não sei que pensar. Não poderás arranjar que eu tenha sempre notícias? Escreve-me sempre que tiveres alguma coisa para me dizer.
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Olha meu Antoninho,
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eu agora tenho sempre a impressão de que vivo porque tu vives, que se deixasse de te ter, acontecia-me o mesmo que a uma pessoa que estivesse pendurada num poço por uma corda segura em cima por outra pessoa, se essa outra pessoa largasse a corda, caía ao poço. Hoje sinto-me abandonada. A minha vida até te encontrar passou-se à tua espera. Podia viver porque ainda não sabia. Agora que sei, tudo mudou.
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Minha querida Isabelinha
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Não tenho agora nada de grande para te dizer. Só coisas pequenas e de que me envergonho de te falar.
Custa-me falar destas coisas. Prometo que não te falarei delas muitas vezes. Tu contas-me coisas muito mais bonitas. Mas a cidade é uma cousa pequenina. O [Axel] Munthe diz que quando os macacos vivem em sociedade numa jaula nunca estão tristes, porque têm imenso que fazer: espiam-se uns aos outros, fazem caretas, intrigam, etc. Eu não te digo que estou muito entretido, mas a gente na cidade vive como os macaquinhos.
Continua a contar-me coisas como as destes dias.
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Correspondência entre Maria Isabel e António José Saraiva
In
Só Para Meu Amor É Sempre Maio
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*imagem Jonathan Wolstenholme
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19 October 2007

Em Despojamento

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. Benedita Kendall
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Dentro de um caixote ou dentro de um móvel de ébano precioso vou pôr a guardar as vestes da minha vida.
As roupas azuis. E depois as vermelhas, as mais belas de todas.
E a seguir as amarelas. E por fim de novo as azuis, mas muito mais desbotadas estas últimas do que as primeiras.
Vou guardá-las devotamente e com muita tristeza.
Quando vestir as roupas negras e quando morar dentro de uma casa negra, dentro de um quarto escuro, abrirei de vez em quando o móvel com alegria, com desejo e com desespero.
Verei as roupas e lembrar-me-ei da grande festa - que será nesse momento de todo finda.
De todo finda. Os móveis espalhados desordenadamente dentro das salas. Pratos e copos partidos no chão. Todas as velas gastas até ao fim. Todo o vinho bebido. Todos os convidados idos. Cansados alguns estarão completamente sozinhos, como eu, dentro de casas escuras - outros mais cansados terão ido dormir.
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Konstandinos Kavafis, in Vestes
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08 October 2007

[des]montagem do eu

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eu
não sou
não sou eu
eu
sou o outro
não sou
sou
qualquer coisa
sou
o intermédio
EU
pilar de ponte
eu tédio
eu
para o outro
eu que vai
vou
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!
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Variações com Mário de Sá Carneiro
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07 October 2007

Maturidades

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As relações de sexo podem ser vividas enquanto somos novos, mas os encontros de amor exigem maturidade, quase ausência de desejo. Gosto de estar aqui contigo, fazer festas no teu corpo já cheio de tempo, apetece-me beijar-te porque estou a beijar a tua história pessoal, aquilo que viveste, as tuas alegrias e as tuas dores. É nestas coisas que sinto que envelhecer é uma arte e que o amor só se vive plenamente quando o desejo já não comanda o nosso encontro mas sim aquilo que somos.
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Alçada Baptista
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in O Tecido do Outono
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02 October 2007

Vida(s)

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Por vezes, olho os prédios das grandes cidades, as janelas na noite iluminadas e fico a pensar em quantas vidas se viverão por detrás de cada uma.
Vidas... as íntimas, as privadas, as secretas, na senda de Octavio Paz.
Lágrimas e sorrisos. Desapontamentos, projectos e sonhos. Descrença e fé. Dores, solidões, amenos estares de quietude e aqueloutros de suprema felicidade.
Casas cheias de gente onde a solidão escorre pelas paredes, casas quase vazias onde a solidão não cohabita.
Estar só é físico, solidão é estado de alma.
Depois, inspiro devagar, fecho os olhos e aspiro os cheiros e sons da noite e sorrio. Aceito o que a vida me dá, dela tiro o seu melhor, sem a procurar amargar. Nada é apenas bom e mau, branco e preto. Entre eles há zonas cinzentas, que não espaços de indefinição, mas meios termos de harmonia.
E os percursos de sofrimento, um dia fazendo-se luz, percebemos que foram necessários e vieram por bem.
A vida pode sempre surpreender-nos, oferecendo-nos inúmeras situações para se encontrar a felicidade e quanto mais simples e genuínos forem os nossos desejos, maior a recompensa, que não é uma paga.
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10 September 2007

Tempo Lapidar

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O pensamento é robusto, premente. Contudo a mão indecisa, as palavras inábeis. Desajeitadas. Esquecidas de em mim se acasalarem. Começo o verbo que abandono. Ou me enjeita.
Não fluem. Não clamam. Trancaram-se. As palavras. Tardam-se em indolência ou sarcasmo.
O tempo, inscreve-se. Lapida-me.
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Mercados da Imaginação

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. Salvador Dali. O Barco, 1943
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Da Imaginação até ao Papel. É uma difícil passagem, é um perigoso mar.A distância parece curta à primeira vista, e embora seja assim quão longa viagem é, e quão prejudicial por vezes para os navios que a empreendem.O primeiro prejuízo provém da natureza assaz frágil das mercadorias que os navios transportam. Nos mercados da Imaginação a maior parte das coisas e as melhores são fabricadas de vidros finos e de cerâmicas transparentes, e com todo o cuidado do mundo muitas se partem no caminho, e muitas se partem quando as desembarcam para terra. E todo o prejuízo deste género é sem remédio, porque é impensável que o navio volte atrás para recolher coisas da mesma forma. Não há hipótese de encontrar a mesma loja que as vendia. Os mercados da Imaginação têm lojas grandes e luxuosas mas não de duração longa. As suas transacções são curtas, arrematam as suas mercadorias rapidamente e liquidam de seguida. É muito raro para um navio voltar e encontrar os mesmos exportadores com os mesmos géneros.Um outro prejuízo provém da capacidade dos navios. Partem dos portos dos continentes prósperos sobrecarregados, e depois quando se encontrarem no alto mar vêem-se obrigados a deitar fora parte da carga para salvar o todo.
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Konstandinos Kafakis, in Os Navios
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17 August 2007

quando a palavra e o silêncio são uma e mesma coisa

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Agora estou aqui, sozinho, sentado neste chão de poeira fina e grãos polidos, pronto finalmente para reflectir com profundidade e isenção acerca disso e de tudo o mais que me ocorra pôr em questão.
Mergulho na areia as minhas mãos nuas: agarro dela uma minúscula porção, uma presença, se tanto, num breve instante, e depois, sem mais, deixo que essa imagem se liberte de mim, escorrendo vagarosa por entre os meus dedos silenciosos e imóveis, e vejo-a, sinto-a a regressar novamente ao seu corpo original e imenso, velho como o mundo.
Estou a contar o tempo.
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Primeiro, não penso nada. Nada em concreto, penso: as ideias surgem-me aos acaso, leves e impalpáveis, sensações soltas, como o vento, ou a música, e eu deixo-as flutuar em mim ou ir por aí fora, livremente.
Depois, a pouco e pouco, apercebo-me disso, do vento, da música, do que deixo e não deixo ir ou vir, e só então começo a ter um vislumbre real, embora fugaz, de como a minha compreensão das coisas é, afinal, ainda tão fraca, tão confusa e limitada.
O tempo, por exemplo: o que é ele, ao certo? Será que, ao contá-lo, o modificamos? Ou será ele que, pela contagem, nos transforma? Eis algo muito mais grave e decisivo: as transformações, as mudanças.
Nada do que nos rodeia é estático, e nós próprios somos imparáveis: tudo se move, tudo nasce, cresce, evolui e morre, constantemente. Até mesmo o deserto.
E a minha ignorância, a minha vontade de saber: como elas são grandes e inquietas.
Muitas vezes, o que parece não é, e o que é não parece. E por isso penso: poderá um homem sozinho dialogar? Ou então: poderá um homem acompanhado dialogar?
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Revejo o espírito das minhas memórias mais terrestres, e sinto, através dele, que nenhuma destas questões é tão estranha como à primeira vista possa parecer: uma completa a outra, e ambas têm os seus fundamentos reais.
É que já estive em lugares, ditos civilizados, e vi coisas sem dúvida muito mais estranhas, que me fizeram reflectir e, com essa reflexão, aprender: havia pessoas a falar sozinhas, e pessoas a falar umas frente às outras e algumas das que falavam não ouviam, e algumas das que ouviam não falavam e havia as que não falavam nunca e as que falavam sempre.
Também já estive fechado em lugares vazios e estreitos, e achei-me, de repente, a falar só, comigo, em voz alta; e estou certo de que falava, realmente, porque me ouvia. Sei bem o que estou a dizer. Tudo à minha volta me ensina a escutar, e eu sei: poderosa é a palavra e poderoso é o silêncio, mas os seus poderes assemelham-se, porque palavra e silêncio são uma e a mesma coisa. Assim, tanto podemos dialogar connosco próprios como dialogar com os outros, porque umas vezes nada nos será dito, e outras vezes nada diremos.
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Alexandre Dale. Pensamentos do Guerreiro no Coração do Deserto.
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Imagens in
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09 August 2007

Indomáveis Protagonistas de Excessos

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. Jonathan Wolstenholme. Biblioteca
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Os livros indomáveis protagonistas.
Os livros protagonistas de excessos.
Os livros contadores de indomáveis excessos.

Os livros e as histórias que narram, as histórias que guardam. Os livros que o tempo guarda.

As estórias, as histórias, a História.

Os livros, companheiros das minhas amplitudes térmicas e sazonais, termómetros das minhas emoções, espectadores das minhas indocilidades e fragilidades.

Os livros das horas que demoram, das que fluem, das que se escoam.
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Jonathan Wolstenholme. The Three Wise Books
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Os que gosto, os que tolero, os que não gosto.

Os que leio, os que abandono, os que devoro.

Os que saboreio. E retomo.

Os de cabeceira, os do sofá, os do comboio, os da esplanada.
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Os livros que me distraem, os livros em que me distraio, os livros em que me abstraio.

Os livros onde me descubro, me revejo, me reencontro, me recupero.
O papel, a tinta, o cheiro, a cor.

Os livros... agarrada a eles, abandonada por eles, abraçada a eles.
Os livros... com que e onde me (re)concílio sempre.
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25 July 2007

Impróprios Nomes Próprios

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Filho. – A adopção desta palavra, em seguida a nomes próprios, como, por exemplo, em Alexandre Braga (Filho), substituiu-se no nosso tempo ao costume anterior, de distinguir do pai, pelo comparativo latino Junior, o filho de qualquer homem em igual nome. Não é novo tal costume, mas renovado, pois em documentos portugueses medievais se encontram formas como Petrus Filius ou Pelagius Filius.
Supomos que a renovação do velho hábito deva incluir-se na espécie de galicismos, e que para ela tenham principalmente contribuído os nomes dos escritores Alexandre Dumas Pai e Alexandre Dumas Filho, tão repetidos e popularizados entre nós, desde meados do século XIX, que a pronúncia do apelido Dumas se aportuguesou, sem nenhum escrúpulo, e rima com plumas ou espumas.
Generalizou-se o sistema francês, e não é difícil prever que, no futuro decurso dos tempos, a palavra Filho deixará de poder funcionar como simples distintivo entre o progenitor e o seu rebento, e assumirá carácter de apelido e de família. Assim aconteceu, como bem se sabe e vê, às formas Sobrinho, Neto, Mano, Primo, Colaço, Morgado, Parente, Velho, etc. empregadas a princípio para distinguir por idade ou certo laço de parentesco indivíduos do mesmo nome, as quais afinal se reverteram como apelidos firmes e correntes.
Era preferível o emprego das formas Sénior e Júnior, porque sendo latinismos adventícios e não expressões vivas da língua, por elas se conservava melhor o sentimento da função diferenciadora.Da nova prática resulta poder profetizar-se que, algum da, surjam combinações como Filho Júnior e até Filho Filho, a não ser que se volte a um sistema antiquíssimo da nossa língua – e então teremos o sr. Filho o Velho e o sr. Filho o Moço.
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Os nomes próprios Pascoal, Paixão, Ressurreição, Ramos, etc. recordam a Semana Santa e foram postos originariamente a crianças cristãs nascidas durante ela, embora quasi todos viessem tornar-se mais tarde apelidos de família e a perder o carácter de baptismais.
Natália, Reis, Natividade, Nascimento, Espírito Santo, Quaresma, são nomes ou apelidos evocadores de outras datas ou períodos do calendário cristão ou católico.
Morei há anos em certa rua do bairro da Estrela, e defronte da minha residência estendia-se uma fieira de casinhas térreas habitadas por boa gente do povo. Entre esses vizinhos, havia um vidraceiro, cuja filha, pequena então dos seus dez anos, se chamava Notícia, porque a sua mãe a dera à luz exactamente no momento em que alí chegou a notícia da proclamação da República.
Este acontecimento político impressionou grandemente o povo ingénuo, que nele via o prólogo de um paraíso com todas as delícias, e sem nenhum defeito.Tão risonhas esperanças, combinadas com a propaganda sectária do Registo Cívil, reflectiram-se logo no baptismo laico de muitas crianças, e das rapariguitas principalmente, porque o seu sexo se presta melhor às alegorias femininas com que se figuram abstracções e ideologias [tais que] Liberdade, Outubrina, Aurora da Liberdade, Nova Pátria e semelhantes.
Conta o dr. José leite de Vasconcelos, na sua magistral "Antroponímia Portuguesa", que a uma criança do sexo masculino se deu há anos em Lisboa o nome exquisito de Rodasnepervil, o qual não é senão a expressão livre-pensador escrita de trás para diante, desconhecendo o pároco que baptizou a criança o intuito do pai dela.
É muito mau o costume de fazer de pobres criancinhas, por paixão política, monumentos involuntários e homenagens vivas às ideias, alegrias ou esperanças partidárias dos pais, esquecidos egoistamente de que os pequerruchos de agora hão-de ser um dia pessoas livres e autónomas, com igual direito a pensarem como quiserem, e que assim ficaram carimbadas. Tudo isto mostra a vantagem dos velhos nomes próprios que em geral usamos, e que nos distinguem sem nos arregimentar em partidos ou ideologias.
No tempo da Grande Guerra, alguém perguntou a Teófilo Braga se era francófilo ou germanófilo. O sábio não estava para dar satisfações ao perguntador e respondeu assim:
- Eu cá sou Teófilo.”
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Agostinho de Campos. in LÍNGUA e Má Língua (Graças da Fala e Nódoas na Escrita), 3ª edição, Livraria Bertrand, 1945.
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* BOTERO. A Família, 1996, imagem in
...
www.artchive.com/.../botero_family.jpg.html
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Poder Escrever

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Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua
[sem se saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada
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Pode-se não escrever
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Pedro Oom
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Rugas...

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Rugas...
Já começo a ter as primeiras rugas
Rugas...
Começam-me a nascer as primeiras rugas
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Rugas de chorar
Rugas de sorrir
Rugas de cantar
Começo a franzir
Rugas de chorar
Rugas de sorrir
Rugas de cantar
Rugas de sentir
Rugas...
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Rugas...
Já começo a ter as primeiras rugas
Rugas...
Começam-me a nascer algumas rugas
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Rugas de chorar
Rugas de sorrir
Rugas de cantar
Começo a franzir
Rugas de chorar
Rugas de sorrir
Rugas de cantar
Rugas de sentir
Rugas...
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António Variações
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Porque os visionários morrem cedo
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Oiçam-se os Humanos cantando António Variações.
excerto in http://binaries.co.2020mm.com/humanos/jukebox.swf
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imagem in http://static.flickr.com/50/147006912_e488c46b59_m.jpg
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Pó Histórico

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Sóbrios interiores. Lugar de encontro de vidas. Livros que, para lá das histórias que os autores escolheram narrar, guardam outras de pessoas que se amaram e intensamente se entregaram.
Ganhará o pó vida?
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Shakespeare, Paris. Imagem in http://photos1.blogger.com
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Parábola

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No silêncio do parque abandonado
O repuxo prossegue a sua luta;
É um desejar alado
A sair de uma gruta.
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Ergue-se a pino no céu como uma lança;
Ergue-se a pino, e sobe na ilusão;
Até que a flor do ímpeto se cansa
E cai morta no chão.
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Mas a raiz do Sonho não desiste;
Subir, subir ao céu, alto e fechado!
E o repuxo persiste
Na solidão do parque abandonado.
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Miguel Torga
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*imagem in http://photos1.blogger.com
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Por Detrás do Olhar

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"O betum dos anos obscurece as fotografias, expõe restos de naufrágio. Relógios de bolso registam uma hora antiga. Brincos pendentes, orfãos que adornaram pele de mulher. Fotos onde o passado passou absorto. Retratos com luz sépia.
Olho as fotos, brinco a recompor as existências dos retratos, as vicissitudes que deram argumento aos seus dias - bastardias, adultérios, outras relações clandestinas que tornaram as suas existências mais folhetinescas ou acidentadas. Novelas de assunto bizantino. A chama discreta da inteligência."
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Juan Manuel de Prada
(adaptado)
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17 July 2007

Escritas

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"Treat me like the page of a book"
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in The Pillow Book, 1996
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direcção de Peter Greenaway
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Olhares

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Ninguém se vê como realmente é (a imagem no espelho é invertida), nem como os outros nos vêem.
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*Imagem Henri Cartier Bresson
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Fracturas

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“A única obsessão que toda a gente quer: “amor”. As pessoas pensam que ao amar se tornam inteiras, completas? A união platónica das almas? Eu não penso assim. Penso que estamos inteiros antes de começarmos. E o amor fractura-nos. Estás inteiro e depois estás fracturado, aberto. Ela foi um corpo estranho introduzido na tua totalidade. Aquele que forma um laço está perdido, a ligação é minha inimiga e, por isso, eu empregava aquilo a que Casanova chamava “o remédio do estudante” – em vez dela masturbava-me. Imaginava-me sentado ao meu piano enquanto ela estava toda nua ao meu lado. Uma vez representámos esse tableau ao vivo, de modo que eu estava tanto a recordar como a imaginar. (...)
O que é o ridículo? Renunciar voluntariamente à nossa liberdade: esta é a definição do ridículo. Aquele que é livre pode ser louco, estúpido, repelente e sofrer precisamente porque é livre, mas não é ridículo (...) talvez agora que me aproximo da morte também eu anseie secretamente por não ser livre.”
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Philip Roth, in O Animal Moribundo
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Explicação dos Sonhos

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"A Casa é a metáfora que alberga todos os nossos sonhos.
Lá dentro está vazia.
(talvez os nossos sonhos não se realizem, talvez não existam, a não ser na nossa imaginação, talvez.)"
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Bartolomeu dos Santos
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*Imagem Yuri Marder

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